Inveja é um sentimento incontrolável. Será?

Por Odamir Meira Jr. @psico.odamirmeirajr

Uma fada se apresenta a um homem consumido pelos ciúmes e oferece-lhe a oportunidade de realizar todos os seus desejos. No entanto, há uma condição: seu vizinho receberia o dobro de tudo o que ele almejasse. Essa proposta intrigante lança a sombra da comparação, desafiando o invejoso a ponderar sobre o verdadeiro significado de suas aspirações. Ao tomar conhecimento disso, o homem solicita à fada que lhe extraia um olho. É a partir da ilustração desta fábula que a psicanalista Melanie Klein desenvolve seu livro “Inveja e Gratidão”, publicado em 1974. Nesta obra, ela elucida de maneira aprofundada os comportamentos e a mentalidade do indivíduo invejoso. A inveja, objeto de reflexão nos textos sagrados, nas tradições mitológicas e na narrativa histórica desde os tempos mais remotos, é um sentimento intrínseco à natureza humana.

Invejar é experimentar um ressentimento profundo quando alguém possui algo que você deseja e, além disso, nutrir o desejo de que essa pessoa enfrente dificuldades. Êxtase e dor se entrelaçam em um sentimento que revela não apenas uma aspiração, mas uma sombra de negatividade frente ao sucesso alheio. Sem dúvida, você já ouviu menções a expressões como “olho-gordo”, “seca-pimenteira” ou “mau-olhado”. Esses termos são bastante enraizados em nosso vocabulário cultural. São expressões do folclore que evocam a inveja: a capacidade de infligir má sorte àqueles que detêm aquilo que desperta o desejo. Esse é um sentimento que, em diferentes graus de intensidade, todos nós experimentamos. Isso não implica que todas as pessoas sejam movidas pela inveja.

Entretanto, existem indivíduos que experienciam a inveja de maneira tão intensa que essa emoção se torna tóxica, necessitando, portanto, de intervenção terapêutica. Essa condição pode afetar não apenas o seu bem-estar, mas também as relações interpessoais, exigindo cuidados especializados. Em diversas situações, essa pessoa apresenta características do transtorno de personalidade narcisista, uma condição psicológica na qual ela tende a superestimar sua própria importância, colocando-se em um pedestal acima dos outros. Nesse contexto, destaca-se a ausência de empatia, acompanhada de uma incessante necessidade de atenção, admiração e reconhecimento excessivos. 

Existe diferença entre inveja, cobiça e ciúme

É frequente que as pessoas confundam inveja com cobiça ou ciúme. Embora possam parecer semelhantes, são, na verdade, sentimentos distintos. O ciúme reflete o temor de perder algo que o indivíduo considera exclusivo – seja um bem material, um melhor amigo ou amiga, um familiar, ou um parceiro(a). Esse sentimento revela a vulnerabilidade nas relações e a possessividade que pode surgir em diversas esferas da vida. O ciumento experimenta uma profunda insegurança ou a sensação de estar ameaçado pela possível perda da outra pessoa na relação, ou até mesmo de seu objeto de afeto, resultando em um sentimento intensamente exacerbado de possessividade.

A cobiça se define como o desejo de possuir algo que pertence a outra pessoa. Pode ser um carro ou uma casa, por exemplo,
ou um corte de cabelo, uma roupa ou até mesmo condutas pessoais. No entanto, sem a intenção de prejudicar o outro. A inveja, conforme elucidado, é um sentimento de ressentimento ou pesar que surge em decorrência do bem-estar ou da prosperidade alheia. Esse sentimento se caracteriza também por um intenso desejo de se apropriar de bens que pertencem ou são usufruídos por outrem. Esses três sentimentos são universais, compartilhados por todos nós. Entretanto, a inveja é uma emoção que carece de qualquer aspecto positivo, pois o invejoso alimenta o desejo de destruir o que pertence ao outro, encontrando satisfação na desgraça alheia. 

De acordo com a psicanálise, a inveja é um afeto que revela como uma parte substancial de nossa identidade se configura a partir das identificações com os outros, mediada por processos de alienação.
Essa perspectiva nos convida a refletir sobre as complexas interações entre o eu e o outro, destacando a importância das relações interpessoais na construção de quem somos. Desde tenra idade, desenvolvemos um forte senso de “identidade”, resultante do “investimento” que realizamos em indivíduos que emitem um magnetismo especial sobre nós. Sentimo-nos plenamente vivos por meio das experiências que coletamos, impulsionados pelo reconhecimento e validação que recebemos dessas pessoas. 

Este intercâmbio enriquecedor nos molda e nos permite explorar as nuances de quem realmente somos. De uma perspectiva profundamente radical, a verdadeira noção de “eu” só pode ser concebida a partir da existência do outro. É na observação e na interação com os outros que o indivíduo se reconhece e se compreende. A inveja, quando entendida sob essa perspectiva, revela-se como um laço social primário – ou até mesmo primordial. Nela, o anseio pelo outro, a busca pelo reconhecimento e a satisfação pessoal se entrelaçam de maneira intrínseca com nossa própria identidade. Essa interconexão sugere que a compreensão do eu está intimamente ligada ao desejo e à comparação com o outro. Na inveja, o desejo de possuir para si e o anseio porque o outro não tenha nos conduzem de volta a essa confusão primordial que se interpõe entre os limites da nossa identidade e suas raízes na alteridade. 

Inveja dói, sabia disso?

Um estudo realizado por pesquisadores japoneses revelou que a inveja é processada no cérebro na mesma região responsável pela percepção da dor física. Essa descoberta sugere que as emoções e sensações físicas podem estar mais interligadas do que se imaginava anteriormente. Por meio de ressonância magnética, os cientistas conduziram um grupo de estudantes a imaginar diversas situações. Essa abordagem inovadora permitiu explorar a ativação cerebral e as respostas emocionais geradas durante os exercícios mentais. Em um primeiro cenário, os estudantes foram comparados a indivíduos com perfis semelhantes, mas que constantemente se destacavam em relação a eles: eram mais atraentes, mantinham relacionamentos com os parceiros mais desejados e desfrutavam de uma condição financeira mais favorável. As ressonâncias revelaram a existência de um gradiente de ativação na região do cíngulo, uma área cerebral que se ativa em resposta à rejeição e à dor física.

Essa descoberta destaca a interconexão entre experiências emocionais e sensações físicas. Posteriormente, os estudantes foram convidados a imaginar que os planos das pessoas com maior sucesso começavam a desmoronar: elas perdiam o emprego, suas relações terminavam. Os pesquisadores observaram que, no cérebro dos indivíduos analisados, em vez de ativar o cíngulo, a área responsável pelo bem-estar e satisfação era que se mostrava ativa. Essa descoberta sugere uma conexão interessante entre os processos emocionais e a percepção de felicidade, revelando nuances importantes na compreensão da experiência humana. Assim, refere-se à alegria que se sente diante da desgraça dos outros, revelando um peculiar gosto pelo desgosto.

Uma constatação significativa deste estudo é que nosso cérebro possui uma anatomia claramente definida que representa os nossos sentimentos. A inveja é um sentimento que se entrelaça com uma variedade de outros afetos, como o orgulho, o ciúme e a paixão. Esses sentimentos têm o poder de mobilizar nosso organismo e perturbar nossa homeostase, ou seja, o nosso equilíbrio interno.

Masterizar a compreensão desse complexo emocional é essencial para o nosso bem-estar. Existe inveja “do bem”? Você provavelmente já ouviu alguém expressar que sente uma inveja “boa”. Neste contexto, as pessoas expressam o anseio por obter algo que pertence ao outro, sem, no entanto, nutrir qualquer malícia em relação a essa pessoa. Como já mencionamos, isso se caracteriza como cobiça. A inveja, definida como a satisfação ou alegria experimentada diante das desgraças alheias, nunca é um sentimento positivo. Ela reflete uma fragilidade interior que nos distancia da empatia e da compaixão. A concepção de duas categorias de inveja — a boa e a má — surge da necessidade de prever e se proteger contra eventuais julgamentos ou críticas de caráter moralista.

Essa dicotomia revela não apenas um mecanismo de defesa, mas também uma forma de lidar com a complexidade das relações humanas. Se a inveja que eu experimento é benéfica, não tenho razões para ser julgado ou condenado, nem por mim mesmo, nem pelos outros. A reflexão sobre os meus sentimentos não deve me colocar em posição de reprovação. A inveja não é apenas um pecado, uma enfermidade ou um transtorno de caráter. Ela é, antes de tudo, uma emoção humana complexa. É uma emoção intrínseca a uma configuração psíquica intricada.

A aplicação da moral na análise de sentimentos ou emoções compromete o vínculo com o psiquismo, obstaculizando a exploração das profundezas e intrínsecas do nosso mundo interno. Dessa forma, comprometemos a oportunidade de cartografar nossas fragilidades e limitações. Assim, torna-se desafiador contemplar nosso potencial, tanto no aspecto criativo quanto no destrutivo — ou mesmo autodestrutivo. Em outras palavras, o processo de avaliação moral nos distorce a realidade a respeito de nós mesmos. É fundamental distinguir entre inveja e admiração. Essa diferenciação nos permite compreender melhor as emoções que nos cercam e a natureza das nossas relações. É perfeitamente viável admirar alguém por suas competências, caráter e situação material, cultural e psíquica, sem que isso implique necessariamente em inveja. Essa apreciação pode ser realizada de maneira genuína, reconhecendo qualidades e conquistas alheias sem o peso da comparação negativa. Entretanto, é impossível sentir inveja de alguém que não se admira.

Redes Sociais: estimulante da inveja
A visualização de postagens repletas de vídeos e fotos de viagens, momentos de lazer em família, e conquistas profissionais em diversas áreas instiga nossos desejos e propicia comparações entre nós (eu) e aqueles que seguimos (eles). Em um contexto clínico, a inveja é um sentimento intrinsecamente associado à raiva e ao ódio. O que você “possui” — seja de maneira subjetiva ou objetiva — não é suficiente, enquanto aquilo que o outro “detém” — como amigos, dinheiro, viagens, lazer, poder, entre outros — é fervorosamente almejado pelo seu eu. 

Essa dualidade evidencia uma incessante comparação, destacando o anseio por aquilo que está fora de alcance, e acentuando a insatisfação com o que já se possui. Portanto, o ódio é direcionado àquele que possui algo, e não ao “eu” interior. Assim, ele resguarda seu psiquismo de um tipo de esvaziamento, bem como do ódio voltado contra si mesmo. Não é possível quantificar se a exposição às redes sociais nos torna mais invejosos, mas podemos afirmar que elas intensificam nossa sensorialidade. 

O desejo por prazer se exacerba, assim como a busca por momentos supostamente felizes, viagens, experiências gastronômicas, vestuário, automóveis, objetos e conquistas pessoais no âmbito do treino. Conviver com a inveja, tanto a sua quanto a dos outros, é um desafio multifacetado. Muitas pessoas costumam afirmar que a dor não é uma conselheira eficaz, mas sim um guia valioso. A inveja é alimentada por uma dor profunda, enraizada em sentimentos de desamor, inferioridade, incapacidade, desvalimento e desamparo. Essas emoções tornam-se o terreno fértil para o cultivo dessa emoção perturbadora. A ira e os ataques, utilizados como instrumento para diminuir o outro, representam as estratégias que o invejoso recorre para mitigar sua própria dor. O invejoso, cego à sua própria condição, direciona suas flechas contra o outro na tentativa de resolver um conflito interno, aprisionado em um ciclo vicioso.

O que fazer para administrar os danos?
Aqui repasso algumas dicas:

  • RECONHEÇA A PRESENÇA: A INVEJA EXISTE
    É fundamental compreender que esse sentimento é intrínseco à mente e ao comportamento humano. Tal entendimento nos capacita a confrontá-lo efetivamente e, acima de tudo, a identificá-lo dentro de nós mesmos.

  • ACEITE QUE DÓI
    O autoconhecimento é uma jornada essencial para enfrentar e compreender a nossa própria inveja. No entanto, além do autoconhecimento, é fundamental cultivar a tolerância, para que possamos suportar a dor inerente à autenticidade do nosso ser.
    Dessa forma, inicia-se um percurso de transformação, que transita de um círculo vicioso para um círculo virtuoso.

  • GUARDE PARA SI
    Se a pessoa conseguir conectar-se com esta faceta obscura de sua personalidade, a capacidade amorosa que se oculta por trás desses sentimentos pode vir à tona. O indivíduo pode experimentar a agonia da inveja, mas opta por silenciá-la. Tolerando essa dor, reconhece que ela é intrínseca à experiência humana.

  • ACEITE QUE VOCÊ NÃO PODE MUDAR O OUTRO
    É evidente que não temos a capacidade de alterar a inveja que reside no outro. Entretanto, é possível identificar comportamentos invejosos e, assim, assegurar nossa proteção.

  • TENHA CONSCIÊNCIA DO SENTIMENTO DO OUTRO
    Reconhecer que aqueles que sentem inveja podem tentar ofuscar nosso brilho, minar nossa criatividade, menosprezar nossas conquistas ou até mesmo provocar inveja em nós, ostentando suas vitórias e aquisições, é um passo fundamental para proteger-nos e evitar nos envolver nesta dinâmica nociva.

  • PENSE EM FAZER TERAPIA
    A convivência e a proximidade com pessoas excessivamente invejosas, especialmente quando se trata de figuras de autoridade, podem ter um impacto profundamente negativo na saúde mental. Os ataques invejosos podem ser profundamente internalizados, resultando na destruição da autoestima e na corrosão do amor-próprio.
    Esses sentimentos podem ainda gerar insegurança, medo, e agressividade contra si mesmo, culminando, em algumas situações, em um estado de depressão. A psicoterapia funciona como uma valiosa aliada na gestão dos sentimentos oriundos da inveja.

Enfim, o ser humano é capaz de nutrir uma infinidade de sentimentos, quer bons, e muitas vezes outros que precisamos ao longo da vida rever, o grande desafio está em poder enxergar isso e crescer. Cultivar bons sentimentos, faz crescer, faz bem para alma, faz bem para a nossa evolução.

** Este texto não necessariamente reflete, a opinião deste portal de noticias